Sessão Coordenada 03 TRABALHO, ESCRAVIDÃO E LIBERDADE

RESUMOS EXPANDIDOS DAS SESSÕES COORDENADAS

Dia 26/10/2015 – Segunda-feira

16h às 17h45 – Sessão Coordenada 03
TRABALHO, ESCRAVIDÃO E LIBERDADE
COORDENADOR: PROF. DR. PAULO ROBERTO STAUDT MOREIRA (UNISINOS)

Que o Governo de S. M. havia concedido verbalmente despensa da condição 8ª do mencionado decreto”: trabalhadores escravos nas obras de construção da São Paulo Railway na década de 1860
Paulo Rodrigues de Andrade (Mestrando em História – Prefeitura de Vinhedo)
Palavras-chave: ferrovia - trabalhadores escravos - São Paulo

Resumo expandido:
O presente texto faz parte de um dos tópicos de minha dissertação de mestrado. A pesquisa tem como objeto de estudo os trabalhadores escravos, brasileiros livres e imigrantes nas obras de construção e início da operação da estrada de ferro São Paulo Railway (Santos-Jundiaí), abarcando período de 1860, quando se iniciou as obras da ferrovia, até 1872, quando é inaugurada a segunda ferrovia da Província, a Companhia Paulista. O título da pesquisa é “Em Virtude dos Artigos 8 e 9”: trabalhadores escravos, brasileiros e imigrantes na construção e início de Operação da São Paulo Railway (1860-1872). A presença de trabalhadores escravos nos canteiros de obras da São Paulo Railway (SPR) foi maior do que fez supor a historiografia que trata do empreendimento ferroviário na segunda metade do século XIX brasileiro. Muitos historiadores, baseados na legislação ferroviária do Brasil Império que vedava a presença de mão de obra cativa nesse empreendimento – o Governo teria tomado essa medida como forma de evitar o desvio de escravos da lavoura para as estradas de ferro - negaram peremptoriamente, outros minimizaram, a utilização de escravos nos canteiros de obras das ferrovias. Recentemente, autores como Maria Lúcia Lamounier e Robério Santos Souza vêem criticando essa visão e chamando atenção para a estreita relação entre ferrovia e escravidão. Conforme Lamounier “as ferrovias não contribuíram significativamente para alterar os moldes em que se pensava a transformação das relações de trabalho”. Analisando o caso da SPR minha hipótese é de que a clausula do decreto que autorizava sua construção, relacionada à proibição do uso de trabalhadores escravos nunca era cumprida, e a presença de cativos nos canteiros de obras da companhia era a regra e não a exceção. Essa presença era de conhecimento do Governo imperial, que em determinados momentos, através da presidência da Província, chegou a interpelar via ofícios, o superintendente da SPR em relação ao fato do descumprimento da condição 8ª do decreto 1 759 de 26 de abril de 1856, que vedava a utilização de escravos pela empresa. Se mostrando conhecedor da realidade de um país escravista como o Brasil oitocentista, o superintendente inglês John James Aubertin tentava justificar junto às autoridades, a utilização dos cativos nas obras da estrada de ferro e argumentava sobre a impossibilidade de se abrir mão dessa força de trabalho na construção da via férrea. A arregimentação de mão de obra escrava nas obras da SPR se dava de várias formas: havia os escravos que faziam parte das turmas de trabalhadores dos subempreiteiros contratados pelos empreiteiros principais para levar a cabo a construção da estrada de ferro; havia os escravos que eram alugados para os canteiros de obras da ferrovia pelos seus proprietários; e havia também os escravos que fugiam dos seus proprietários e se dirigiam para a ferrovia em busca de trabalho e liberdade. Essa última forma de engajamento da mão de obra cativa, proporcionada pelas fugas, foi observada por Robério Santos Souza na sua tese sobre a Estrada de Ferro de São Francisco, na Bahia. Como destacou Sidney Chalhoub com relação a Corte, que no século XIX teria funcionado como um tipo de cidade-esconderijo para os escravos, Maria Cristina Cortez Wissenbach notou também esse fato com relação à cidade de São Paulo, que atraia muitos escravos em fuga na segunda metade do século XIX. Se a capital paulista funcionava como uma cidade-esconderijo, os canteiros de obras da SPR seria uma espécie de esconderijo dentro do esconderijo. Entretanto, a ferrovia que libertava, também escravizava, e cativos procuravam fugir dos trabalhos na linha férrea. Sobre a bibliografia do universo de trabalho ferroviário no Brasil, Thiago Moratelli afirmou que os estudos sobre os trabalhadores da operação das ferrovias é grande, porém, poucos são os que tratam do “mundo do trabalho da construção ferroviária”. Para Lamounier essa lacuna se deve a dificuldade de rastrear esses trabalhadores nas fontes. Para conseguir alcançar o objetivo de pesquisar “a história do trabalho vivo que se petrificou nessas colossais obras de engenharia”, nas palavras de Francisco Foot Hardeman, analisarei uma gama diversificada de fortes impressas e manuscritas para descrever e interpretar as experiências desses trabalhadores. No caso dos trabalhadores escravos da construção da SPR usarei documentação do Arquivo Publico de São Paulo (APESP): relatórios do engenheiros fiscais do governo, principalmente mapas de acidentes e mortes na construção da linha; ofícios do superintendente da companhia. No Correio Paulistano, disponível no APESP e na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, utilizarei artigos do jornal relacionados às obras da SPR, anúncios de fuga de escravos, demonstrativos de despesa da companhia. Será pelo cruzamento dessas fontes que buscarei perscrutar as experiências de trabalho dos escravizados que fizeram parte do exército de trabalhadores subalternos que levaram a termo a construção da primeira ferrovia na Província.

A dinâmica das atividades escravas nas propriedades de uma freguesia rural da Província de São Pedro (Aldeia dos Anjos, século XIX)
Wagner de Azevedo Pedroso (Mestre em História – Prefeitura de Montenegro)
Palavras-chave: escravidão - zona rural - trabalho

Resumo expandido:
Esta apresentação tem por objetivo analisar a dinâmica do trabalho cativo na Freguesia de Nossa Senhora da Aldeia dos Anjos - uma das freguesias do município de Porto Alegre durante praticamente todo o século XIX. Buscando compreender as atividades dos escravos na localidade foram analisados inventários post-mortem (89) da Aldeia dos Anjos nas décadas de 1840 e 1860 (o recorte cronológico esta relacionado a tentativa de insurreição escrava que serviu de norteador para a pesquisa) para compreender a estrutura econômica da região, registros eclesiásticos (batismo, matrimônio e óbito) para compreender as relações familiares e sociais existente entre os inventariados e entre os cativos e o processo-crime de uma tentativa de insurreição escrava ocorrida na localidade no ano de 1863, que nos ajuda apresenta fragmentos das rotinas diárias dos escravos, assim como de suas relações familiares e sociais. Analisando os inventários da Aldeia dos Anjos encontramos indícios da predominância de atividades agrícolas, com plantações de milho, feijão e, principalmente, mandioca, sendo que a transformação deste último produto em farinha tem destaque na economia local e era realizada nas diversas atafonas espalhadas pela Aldeia dos Anjos. As atafonas parecem ter sido bastante comuns, e de grande importância, para a localidade durante grande parte do século XIX (Oliveira, 2007: 158 e Pedroso, 2013:60-65), como podemos observar visto que quase metade (44) dos 89 inventariados eram possuidores de atafonas. Para além das atividades agrícolas ainda encontramos indícios de propriedades com atividades de pecuária, sendo que, geralmente, esta era aliada a atividades agrícolas, e praticamente, todas eram possuidoras de atafona. Considerando que a Aldeia dos Anjos era uma freguesia rural, com atividades econômicas voltadas, principalmente, para o mercado interno, e com uma elite pobre se comparada a de outras regiões da província (como por exemplo Pelotas, Rio Grande e Alegrete), percebemos, mesmo assim, uma ampla disseminação da mão de obra escrava na freguesia. Observando o número médio de cativos por inventariado percebemos que nestas duas décadas temos 6,9 escravos por propriedade, considerando esse número por inventariados com e sem atafona, percebemos que no primeiro caso este número era de 9,3 cativos, já no segundo caso esse número caia para 4,8, indicando a concentração de cativos nas propriedades desse grupo detentor de atafonas. Como os inventariados da Aldeia dos Anjos pareciam desenvolver diversas atividades em suas propriedades (agricultura, pecuária e fabrico de farinha), acreditamos poder sugerir, pelos indícios presentes em inventários e também nos relatos do processo-crime, que os cativos desenvolviam as mais variadas atividades para seus senhores, ou seja, conforme a necessidade do período o escravo era deslocado para uma ou outra atividade.
Buscando compreender melhor esta percepção dos escravos desempenhando diversas funções na Aldeia dos Anjos, procuramos cruzar os dados dos inventários com os registros de eclesiásticos e alguns relatos do processo-crime. Nesse cruzamento foi possível observar fragmentos das relações familiares existente entre os inventariados, levando-nos a sugerir a possibilidade de troca de cativos entre os integrantes das famílias senhoriais, como podemos observar no relato do cativo José. Este afirmava ser escravo de Innocente Ferreira Maciel, mas diferentemente do que pensávamos, ele não residia na propriedade deste senhor, mas sim “no Butiá em casa do velho Francisco Maciel”, analisando o registro de batismo de José, encontramos que este foi registrado como sendo escravo de Innocente, mas no inventário deste Francisco, José aparece relacionado entre os escravos deste “velho senhor”. Ao cruzarmos os dados dos senhores, observa-se que Innocente Maciel era filho de Francisco Maciel, ou seja, provavelmente este escravo deveria realizar tarefas entre as fazendas dos integrantes desse grupo familiar. Assim como José outros foram os escravos que aparecem batizados como escravo de um senhor, mas no inventário foram relacionados como bens de outro senhor. Há o caso ainda de Aniceto, escravo de Francisco Maciel, que no interrogatório é descrito com a profissão de campeiro, mas em seus relatos, presente no processo-crime, descreve desempenhar diversas atividades relacionadas ao campo, assim como na distribuição de produtos agrícolas pela localidade (Pedroso, 2013: 185), este caso se enquadra com o estudo de Teixeira que ao analisar o caso do escravo campeiro Jacinto, escreve que este relatou em um interrogatório “que trabalhava 'no que o senhor manda fazer e é campeiro'” (Teixeira, 2008: 100), outro caso que corrobora para essa percepção é de Aniceto (padrinho do réu Aniceto, já citado) este foi relacionado no inventário de seu senhor como “campeiro, princípio de carpinteiro, hábil para todo o serviço” (Pedroso, 2013: 200). Considerando os dados apresentados anteriormente, sugerimos que devido a configuração da propriedade estar focada em uma variedade de atividades, e não havendo a necessidade e nem capital suficiente para adquirir novos cativos, os escravos dos senhores acabavam por desempenhar atividades de todos os tipos, podendo em alguns momentos, desempenhar o papel de “roceiro” ou de “campeiro”. Claro que com isso não estamos afirmando não haverem posições de privilégios dentro das escravarias locais, apenas destaco que as limitações pelas quais os senhores passavam, possibilitavam e, mesmo, exigiam que os escravos fossem amplamente utilizados pelos seus senhores. Para finalizar destacamos a existência de uma ampla rede de relações familiares senhoriais que, conforme os relatos de alguns escravos, demonstram fragmentos de uma mobilidade espacial dos cativos entre as propriedades dos inventariados Desta fora, afirmamos que em uma freguesia rural constituída basicamente por pequenas e médias propriedades, com uma elite pobre, os senhores de escravos criaram mecanismo de ajuda mútua para a utilização da mão de obra escrava, fazendo com que os cativos dos senhores trabalhassem nas mais variadas atividades e nas mais variadas propriedades das famílias senhoriais. Os dados analisados também permitem fortalecer os argumentos que já vem sendo apresentados por outros pesquisadores, como Teixeira (2007), de que a mão de obra cativa não estava restrita somente as grandes propriedades.

Alguns contornos do trabalho livre num espaço de economia agropastoril (Região das Missões, Rio Grande de São Pedro, meados do século XIX)
Leandro Goya Fontella (Doutorando em História – UFRJ)
Palavras-chave: trabalho rural livre - século XIX - Brasil meridional
Resumo expandido:
Nesta comunicação busca-se discutir sobre os contornos assumidos pelo trabalho livre na economia agropastoril da Região das Missões, localizada na fronteira-oeste do Rio Grande de São Pedro, em meados do século XIX. Em documentos como relações de despesas contidas em inventários post mortem e noutros registros, em especial, a Relação das estâncias que contém o termo de São Borja com as declarações dos nomes de seus proprietários, número de crias vacuns e cavallares que marcarão no anno de 1857, e as pessoas empregadas com capatazes e piães, uma espécie de censo agrário, se encontram valiosas informações sobre a presença de capatazes e peões livres nos estabelecimentos produtivos daquela região. Além disso, a análise da envergadura das unidades produtivas através dos inventários post mortem revela um universo diversificado composto por trabalho de caráter familiar. Mesmo que não tenha sido privilégio dos grandes criadores, o emprego de peões livres foi bem mais frequente entre eles. Provavelmente, o custo de contratação destes peões era consideravelmente alto. Portanto, teria sido difícil para pequenos e parte dos médios criadores arcar com as despesas de uma mão-de-obra instável e cara. Nesse sentido, o trabalho escravo surgia como a alternativa mais viável para assegurar o trabalho estável. Além disso, pequenos e médios produtores acabavam agregando bens ao patrimônio produtivo. A análise de algumas relações de despesas feitas com salários de peões nos comprovou o padrão descoberto por Farinatti (2010), qual seja, de que os peões que ficavam por tempos curtos nas estâncias recebiam maiores vencimentos, haja vista que, estavam atendendo a uma demanda urgente de trabalho, e isso fazia com que os estancieiros se dispusessem a pagar maiores salários a estes peões. Com efeito, grande parte destes peões eventuais de poucos dias ou meses não se empregava de forma permanente porque não eram sujeitos desprovidos de meios de produção. Na maior parte das vezes, eles estavam inseridos em pequenas unidades de produção de caráter familiar, e aproveitavam os ciclos pastoris em que os estancieiros necessitavam com maior urgência de seus serviços para se beneficiarem dos altos salários.
No que se refere à produção com caráter familiar, pudemos notar que na região das Missões o número de pequenos produtores escravistas deixa evidente que os produtores mais pobres da região das Missões não se encaixavam no conceito de camponês de Alexander Chayanov (1974), ou no que Hebe Mattos (2009), baseado neste autor, chamou de experiência camponesa, isto é, a família camponesa com posse de terra e com uma racionalidade econômica específica orientada para a subsistência, e que age no sentido de equilibrar, ao longo do ciclo de vida familiar, a força de trabalho com o consumo. Em nossa compreensão, o acesso à terra, ao trabalho cativo de expressiva parte da população e o desenvolvimento de diversas atividades produtivas num mesmo estabelecimento (com produção de artigos de aceitação nos circuitos comerciais que passavam pela região) indicam que, embora a organização produtiva da pequena produção visasse basicamente à reprodução social de suas existências, ela não estava predominantemente alheia as dinâmicas dos circuitos comerciais que os grandes produtores da região das Missões se vinculavam. Nesse sentido, a subsistência das famílias de pequena produção passava pela produção de artigos de aceitação nos circuitos comerciais que passavam pela zona das Missões, ou seja, a subsistência de significativa parte dos produtores pobres era garantida pela integração a ao menos um circuito comercial. Cremos que na região das Missões, na primeira metade do século XIX, a subsistência e vinculação a fluxos comerciais compunham parte de uma mesma dinâmica produtiva. Isto não significa dizer que não existiram sujeitos e/ou famílias que desenvolveram somente a produção de subsistência, porém entendemos que estas tenha sido experiências residuais. Ademais, mesmo que a ligação aos circuitos comerciais não garantisse a ampliação dos modestos estabelecimentos agrícolas ou a diversificação de investimentos, ela seria uma etapa do processo de subsistência destes sujeitos e/ou famílias, uma vez que sem ela, provavelmente, as possibilidades de reprodução social de suas existências seriam críticas. Enfim, podemos considerar que a produção de pequena monta com caráter familiar na região da Missões não se caracterizou pela subsistência em sentido estrito, mas por uma subsistência que dependia da diversificação produtiva e da ligação com fluxos comerciais mais dinâmicos.
Referências:
CHAYANOV, Alexander. La Organización de la unidad económica campesina. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1974.
FARINATTI, Luís Augusto. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul do Brasil. Santa Maria (RS): Editora da UFSM, 2010.
MATTOS, Hebe M. Ao sul da história: lavradores pobres na crise do trabalho escravo. São Paulo: Braziliense, 2009.

Entre qualificados e qualificadores: perfis ocupacionais de guardas nacionais no Rio Grande do Sul (1850-1873)
Miquéias Henrique Mugge (Doutorando em História - UFRJ)
Palavras-chave: Guarda Nacional - listas de qualificação - ocupações
Resumo expandido:
Este trabalho analisa a Guarda Nacional do Brasil – também conhecida como milícia cidadã – desde a ótica de seus partícipes. Nervo militar do Império para a defesa de seus interesses, ela era uma máquina cujas engrenagens tinham, por vezes, estratégias próprias. A partir de 1850, no Rio Grande do Sul, as vontades secessionistas foram abandonadas e a milícia tornou-se um canal de comunicação forte, por onde também se transmitiam insatisfações, já que negociar ainda parecia mais interessante que separar. O que quero dizer é que a milícia conectava espaços de poder, fazendo com que os mais distantes geograficamente ficassem, muitas vezes, muito próximos do centro.  A Lei número 602, de setembro de 1850, normatizava nacionalmente as qualificações para a Guarda Nacional: seriam feitas em cada Paróquia ou Capela, no distrito de cada Companhia ou Corpo, “por um Conselho de Qualificação, com recurso suspensivo para um Conselho de Revista, e deste, sem suspensão, para o Governo da Corte e para os Presidentes nas Províncias”. Para isto, o Conselho de Qualificação seria composto por oficiais da própria Guarda; o Conselho de Revista pelo oficial mais graduado de cada município, pelo juiz municipal e pelo presidente da Câmara de Vereadores – na ausência do juiz, poderiam servir como substitutos o delegado ou o subdelegado de polícia. Para que as informações apresentadas pelos qualificados fossem cotejadas, párocos, juízes de paz, delegados, subdelegados e outros funcionários públicos eram obrigados a prestar “esclarecimentos a seu alcance”. Os cidadãos deveriam comprovar idade, estado civil, ocupação e renda anual. Ou seja, cada cidadão do Império deveria apresentar-se, anualmente, a uma mesa composta por três oficiais de milícia, que colocavam seu nome e demais informações em uma lista produzida naquele momento, que passava, posteriormente, por uma revisão e – só então – era produzida uma nova lista, em ordem alfabética, de todos os cidadãos aptos ao serviço ativo ou da reserva de uma dada localidade (paróquia ou município). A insígnia simbólica de cidadão ativo era, então, homologada. Fazer parte do serviço ativo também pode ter sido estratégico: marchar ao lado de um poderoso local provavelmente renderia frutos no futuro, mesmo tendo que lidar com as incertezas do campo de batalha. Ser hierarquizado e qualificado era também demonstrar de que lado se estava – junto de Fulano ou Ciclano, do lado da ordem ou da desordem. As “delícias da paz” estavam reservadas àqueles que seriam elencados na reserva. As listas que acessei estão em sua maior parte resguardadas no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Dividem-se em dois períodos: dos anos anteriores à Guerra do Paraguai, de 1861 a 1863; e dos posteriores, de 1869 a 1873. Trato, dessa forma, de dois momentos distintos no tocante à composição social da milícia: as listas do primeiro período foram produzidas em tempos de paz; revelam uma Guarda Nacional menos preocupada com os destacamentos para o campo de batalha ou para resguardar as fronteiras. As do segundo grupo, por sua vez, fazem transparecer a priori as agruras da guerra: há mais dispensas por saúde – são os doentes que retornaram; mais veteranos de guerra, agora dispensados por contribuírem com o esforço de campanha. Com uma amostra de 26 listas de guardas nacionais qualificados tanto para o serviço da ativa, quanto para o serviço da reserva, a análise abrange 28.610 cidadãos (71,9% da ativa, 28,1% da reserva). Coloco em discussão, a partir de tais números, um modelo de estrutura social de parte da sociedade oitocentista no Rio Grande do Sul. Com suas ocupações em foco, procuro por diferenças na dimensão e na composição populacional. Manejando por esse labirinto (VELLASCO, 2004, p. 190; MATTOSO, 1992, p. 579-593), trata-se de contribuir com o debate acerca das hierarquias sociais do Império do Brasil e da composição da própria Guarda Nacional, que ainda carece de análises mais detalhadas sobre seus participantes. Em quais mundos de trabalho os guardas nacionais se inseriam? Essa massa de informações inédita, no entanto, apenas inclui aqueles que cumpriam os seguintes critérios: homens, de 18 a 60 anos, cuja renda anual média era de, no mínimo, 100 mil réis. O universo ocupacional dos soldados e dos oficiais sugere que é preciso superar simplificações. Por fim, o que tento demonstrar é o modo pelo qual se organizava localmente a Guarda Nacional brasileira – e como contribuía para o desenvolvimento político e militar do Império.
Referências bibliográficas:
MATTOSO, Kátia de Queirós. Bahia, século XIX: uma província do Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
VELLASCO, Ivan de Andrade. O labirinto das ocupações: uma proposta de reconstrução da estrutura social a partir de dados ocupacionais. Varia Historia, n. 32, julho 2004, p. 190-209.